Qual é a cara da São Paulo Fashion Week 2021?
- Patrícia Soares
- 22 de dez. de 2021
- 5 min de leitura
Atualizado: 24 de dez. de 2021
As Semanas de Moda – do inglês fashion week – têm origem em 1858, exclusivamente com desfiles da alta-costura, inicialmente dentro das próprias lojas de departamento. São divididas em estações: primavera/verão e outono/inverno, com base no Hemisfério Norte. Quanto ao público, era mais restrito, composto por convidados exclusivos considerados compradores em potencial ou embaixadores que dariam mais visibilidade ao evento ou à marca, como celebridades e grandes designers. No século seguinte, em 1947, ao apresentar o primeiro desfile da própria marca, Christian Dior foi o estilista pioneiro a convidar a imprensa, com o intuito de atrair o público consumidor norte-americano. Na ocasião, a editora Carmen Snow, da revista Harper's Bazaar, foi a responsável por consagrar o nome da primeira coleção do modista: "New Look".
Primeira coleção Primavera/verão da Dior, 1947, New Look.
Fonte: Revista Máxima
No Brasil, a São Paulo Fashion Week – SPFW – é considerada a principal Semana de Moda desde os anos 2000 e está entre as maiores do mundo. O público dela abrange grifes, influenciadores, celebridades, jornalistas, fotógrafos e compradores. Pesquisando no Google “modelos que ficaram famosas no São Paulo Fashion Week” e filtrando por imagens, ironicamente me deparei com fotos de modelos brancas, altas e de cabelo liso. Seria, deste modo, o suposto padrão das mulheres brasileiras mesmo em uma população de maioria negra?
Investigando a respeito da representatividade na SPFW, apesar de trazer em suas exposições o objetivo de expressar o que é a moda e a identidade brasileira, foi somente na última edição – entre os dias 16 e 21 de novembro deste ano –, graças à mobilização do coletivo Pretos na Moda, que a exigência de pelo menos 50% dos e das modelos fossem de origem indígena, negra ou afrodescendente foi colocada em pauta. Mesmo assim, algumas marcas descumpriram a exigência. Esse índice representa a tentativa de invisibilidade dos traços de brasilidades dentro do cenário da moda nacional que é disseminada.
O Projeto idealizado pelo Pretos na Moda recebeu o nome de Sankofa, um ícone que faz parte da simbologia cultural africana, especialmente da África Antiga, que traz como significado a necessidade de “resgate ao passado”, podendo nos remeter à ideia de resgate à ancestralidade do povo preto associado ao intuito de mostrar que ocupar esses espaços dominados pelas elites é resultado da resistência dos antepassados.
Segundo divulgação do Coletivo publicada no Instagram, as marcas escolhidas para compor a primeira edição foram as seguintes: “Meninos Rei, Naya Violeta, Mile Lab, Santa Resistência, Az Marias, Silvério, Ta Studio e Ateliê Mão de Mãe”. Dentre elas, escolhi uma específica para tratar: Az Marias. Trata-se de uma marca fundada em 2015 pela estilista Cintia Felix, no Rio de Janeiro. De acordo com o site da marca, o nome referencia a família da fundadora “em que todas as mulheres são nomeadas Maria, desde sua avó, Rosa Maria, até a sua filha, Maria Marisa. O nome é uma celebração a essa ancestralidade e uma homenagem a todas Marias de A a Z”.
O modelo de produção utilizado por ela é o slow fashion, que inclui na fabricação das peças um olhar voltado para a sustentabilidade, rejeitando o fast fashion – este, pelo contrário, incentiva o consumo sem pensar nos impactos ambientais –. Além disso, o slow fashion valoriza o consumidor local, cria peças de qualidade com longa duração – informando a matéria-prima utilizada – e calcula os preços com base no processo de produção. Portanto, a missão, visão e os valores da empresa Az Marias são guiados por quatro princípios: Impacto social, Impacto ambiental, Corpos reais e Slow fashion.
Az Marias traz para a passarela no dia da Consciência Negra, 20 de novembro, uma coleção dedicada à antropóloga, pesquisadora e mulher digna de outras inúmeras qualificações, Lélia Gonzalez, que tanto contribuiu para dar visibilidade às causas negras diante do contexto brasileiro. Cintia fez uma consultoria com a família da autora para se inspirar durante o processo de criação.
Antes de tudo, vamos passear um pouco pela vida da homenageada
Quanto ao aspecto visual, não é difícil encontrar imagens de Lélia cheia de acessórios. No entanto, expressar essa personalidade foi fruto de muitas descobertas, como ela mesma narra em autobiografias.
Fonte: Projeto Memória
Por muito tempo, se caracterizou como uma "lady" – usava perucas de cabelo liso e claro e roupas discretas, para ser aceita nos espaços públicos e majoritariamente brancos que frequentava –, sofreu com a tentativa de embranquecimento social, processo tão comum e violento presente na realidade do Brasil, intensificado durante os séculos XIX e XX. Conforme Elizabeth Viana, socióloga e amiga da autora, o candomblé também tem importância na vida de Lélia porque foi base para que ela definitivamente encontrasse sua identidade cultural.
Lélia Gonzalez, 1966. Fonte: Acervo Lélia Gonzalez.
É a partir do processo do autoconhecimento, da busca sobre suas origens, que Lélia renuncia tudo aquilo que não representava quem era ela. O monocromático foi dando lugar a cores vibrantes, o sorriso discreto ao de canto a canto da boca e as perucas ao black power, assim como o de sua companheira de luta, Angela Davis, que está entre os principais nomes quando se fala em resistência afrodescendente. Todos esses fatores estão ligados às descobertas subjetivas, como define a pesquisadora Denise Sant'Anna: "as intervenções realizadas sobre o corpo estão intimamente relacionadas às suas sucessivas redescobertas: estamos constantemente redescobrindo o corpo".
Lélia Gonzalez, Angela Davis. Baltimore, 1985. Fonte: Brasil de Fato.
As cores têm importância significativa na composição do vestuário, como já evidenciava a estilista Elsa Schiarparelli, com a criação do “rosa choque” e o intuito de imprimir identidade nas vestes para não passar despercebida. Do mesmo modo, Az Marias conseguiu reviver a memória e o estilo de Lélia Gonzales nas peças da coleção apresentada no desfile da SPFW, com destaque para muita cor.
A escolha dos acessórios foi fruto da pesquisa etnobibliográfica da curadora Fabih Preta (@fabihpreta, no Instagram) e do artista plástico Lumumba (@studio_lumumba), com base nas joias que Lélia Gonzalez usava e nas divindades africanas Oxum e Yemanjá.
As modelos escolhidas exalam representatividade, o cabelo comunica as origens afrodescendentes, ou adotando o termo que Lélia trata em suas obras, transmite "amefricanidade", esse cruzamento das influências e da presença africana nas Américas, no Brasil.
Na foto acima, destaque para o maxi colar, nas palavras de Fabih: "deram o charme às peças lindas da coleção @azmarias que são roupas e caimentos incríveis e correspondem a uma elegância diferente que dominou esta edição de número 52 da @spfw. Bom gosto, tecidos leves, perspectivas infinitas de enaltecer a pele preta".
Os óculos são companheiros de Lélia, como vimos em algumas imagens dela. Não é à toa que eles também brilharam nas e nos modelos do palco como um item indispensável, "primordial para imprimir uma coleção alegre que conecta com a vibe dos anos 70".
Fonte das imagens: @azmarias e @spfw, no Instagram.
A abertura e o decorrer do desfile são acompanhados por músicas que exaltam a cultura negra e falas da autora, em um cenário ambientado com imagens do acervo de Lélia, composto por cores vibrantes.
Para assistir completo, clique no link abaixo:
Comments